2 de julho de 1994 data um dos episódios mais tristes ligado ao tão querido, inexplicável e incompreendido (para alguns) desporto que tanto nos apaixona. Sujeito a fanatismos e a outras formas similares de paixão, o futebol sempre foi - e continuará a ser - um veículo propenso a uma explosão de emoções, por vezes, incontroláveis.
Afinal, era impossível ficar indiferente e a perda de El Caballero revelou-se penosa para a população colombiana que olhava para o Mundial 1994 de forma diferente. Depois de, no ano anterior, a equipa capitaneada por Andrés Escobar ter fechado a fase de qualificação com chapa cinco à Argentina em Buenos Aires, estava à porta uma competição onde a confiança na geração de ouro, e quiçá no consílio dos deuses, chegava a projetar um trono ao lado de países como Brasil ou Itália.
Pelo contrário, não foi assim. Bem longe, aliás. A prestação defraudou as expectativas e, como se não bastasse, a dor daquele país tornou-se muito mais intensa. O drama criminal, responsável por uma sociedade pintada pela desordem, cruzou-se com o futebol no famoso assassinato do ícone do Atlético Nacional na madrugada do segundo dia de julho em Medellín.
A história categórica de El Caballero
O último adeus a Andrés Escobar juntou mais de 100 mil pessoas, entre elas, várias figuras do poder, nomeadamente, o Presidente da República daquele país. Estes números exaltam várias coisas como, por exemplo, o amor, respeito e consideração que os colombianos sentiam por um homem que falecia aos 27 anos. Mas tal despedida merece uma justificação ainda mais aprimorada, não fosse a figura do colombiano inerente a um vasto leque de qualidades para além do jeito para a bola. O carinho pelo defesa-central, uma personalidade distinguida naquela sociedade, remonta à sua história de vida e a valores que vincadamente defendia.
E porque esta construção de figura admirada se torna importante de contextualizar, a sua postura em campo era a representação daquilo que demonstrava ser fora dele: calmo, justo e sereno. Capaz de unir uma nação através do tão falado cavalheirismo, o seu carácter não passava despercebido a ninguém. Andrés Escobar usava o seu estatuto para ajudar os mais carenciados, sobretudo crianças: visitava escolas, entregava presentes nos bairros pobres de Medellín durante o Natal, entre outras ações bondosas...
Apesar de tudo, o reconhecimento que Andrés Escobar merece também deve-se cingir aos relvados onde, no auge da sua carreira, esteva prestes a assinar pelo Milan para fazer dupla com, nada mais, nada menos, que Franco Baresi. Infelizmente, o acontecimento fatídico naquele verão de 1994 levou tudo. Apenas 10 dias depois de terminada a prestação no Mundial dos Estados Unidos da América...
O Mundial 1994 e o final trágico...
As expectativas em torno da seleção colombiana eram enormes. O alinhamento que contava com nomes como Valderrama, Rincón, Faustino Asprilla ou Valencia, e sem esquecer o capitão Andrés Escobar alimentava o sonho dos colombianos. E esse sonho acabaria por virar pesadelo. A nação da América do Sul viu os seus heróis caírem perante a Roménia de Hagi e os Estados Unidos, seleção anfitriã que viria a vencer por 2x1 depois de um autogolo de El Caballero. Aos 35 minutos de jogo, na tentativa de cortar um cruzamento da esquerda, o defesa central esticou-se para travar um passe que poderia levar muito perigo, mas acabou por trair Óscar Córdoba.
«Não consegui dormir bem, mas não apenas por causa do golo. Foi um lance infeliz e impossível de prever, que não esperava que pudesse afastar-nos do Mundial, mas não dormi bem também por causa de tudo o que aconteceu com a equipa», referiu no dia seguinte, criticando o clima de apoteose vivido e a intranquilidade gerada por uma confiança excessiva.
«O facto de termos sido campeões do mundo antes de jogar afetou-nos. Toda a imprensa e adeptos tinham muita confiança e isso gerou pressão, porque no futebol tudo pode acontecer, como ficou demonstrado.Só temos duas opções: ou permitimos que a raiva nos paralise e a violência continue; ou ultrapassamos e tentamos o nosso melhor para ajudar outros. É a nossa escolha. Deixem-nos, por favor, manter o respeito», completou o jogador num texto que escreveu para todos os colombianos.
Para se ter uma ideia, que certamente não espantará muitos, a Colômbia era um país profundamente mergulhado em redes de crime organizado, narcotráfico e, no fundo, por uma criminalidade assustadora. Narcotráfico, Escobar, Colômbia. É normal que a associação seja feita ao conhecidíssimo Pablo Escobar (falecido em 1993), o barão da droga mais famoso do mundo e confesso admirador de futebol, industria na qual detinha contactos, mas onde o outro Escobar em questão, Andrés, fazia questão de se afastar.
A ideia de que as motivações destes criminosos partiram dos prejuízos causados em termos de apostas é muito falada na Colômbia, inclusive, pela família do jogador. As redes criminosas encontraram em Andrés Escobar um bode expiatório para as avultadas perdas monetárias destas organizações que dominavam a sociedade, situação que Santiago Escobar, o seu irmão, defendeu tristemente: «Era uma época de violência e o futebol não escapou».
As teorias da conspiração e o distorcer da verdade sempre foram bases que pautaram a opinião pública. Mergulhado num intenso mediatismo, o crime levou o motorista dos Gallón a ser condenado a 43 anos de prisão, tendo saído da cadeia 11 anos depois por bom comportamento, ou seja, em 2005. Nunca mais se soube do paradeiro do homem por detrás das balas que tiraram a vida à figura pública, sendo a convicção de muitos que os irmãos Gallón, elementos do grupo criminoso Los Pepes, encontraram no seu motorista a desculpa perfeita para o crime.
A mancha incapaz de ser limpa
Todavia, é inconsequente não refletir sobre a importância que este acontecimento teve no panorama mundial, não só no domínio do futebol, mas também na vida.
Foi com estes antecedentes que uma pessoa bondosa como Andrés Escobar caiu nas graças de criminosos, não fosse o futebol, uma vez mais, a distração perfeita que mantinha os colombianos fora dos problemas impostos por uma sociedade dominada pelo crime e violência. Era por isto, por isto mesmo, que os valores de justiça, bondade ou benevolência eram tão importantes e foi o que, invariavelmente, emancipou um futebolista simbólico que, pelas mais variadas razões, não pode cair no esquecimento, nem nunca cairá.
Santiago Escobar, irmão: «Até hoje, as pessoas se lembram dele, isso conforta-me. Isso tem a ver com os valores e princípios que ele tinha. Era um rapaz muito amigável, bastante divertido. Um tipo de pessoa que está em extinção».
Rafael Villegas, jornalista: «Era sensível em toda a extensão da palavra. Tranquilo e sereno, com o seu sorriso de dentes grandes fazia desaparecer num instante qualquer resquício de nervosismo. Este rapaz comprido e forte era a ilusão e a esperança transformadas em homem».
Esteban Duperly, jornalista: «Apesar da aparente devoção, Andrés não é considerado um santo. Mais que um ser divino, preferem pensar nele como um amigo que os acompanha ao estádio. No entanto, ao redor de sua figura ocorre um fenómeno psicológico considerável: Escobar também serve como fator de coesão. Ao menos em Medellín, o seu caso é próximo, dói a todos. É, por assim dizer, uma espécie de primo coletivo na cidade, onde cada um tem o drama de um parente vinculado a uma tragédia com balas. Daí o culto permanente à sua imagem e presença».
2-1 | ||
Earnie Stewart 52' | Andrés Escobar 35' (p.b.) Adolfo Valencia 90' |