«Se perguntares a qualquer pessoa fora da Escócia, o dérbi mais conhecido é o "Old Firm" entre o Rangers e o Celtic, claro. Mas se perguntares a um verdadeiro escocês qual é o estádio mais intimidante do país, a resposta vai ser: Tynecastle.»
Do embate óbvio entre protestantes e católicos emerge a história de um outro duelo que, menos publicitado internacionalmente, acorrenta corações e hipnotiza a capital. Se em Glasgow a dimensão do "Old Firm" encontra sustento nas crenças religiosas e no número de títulos dos dois maiores clubes da Escócia, em Edimburgo o espaço sentimental é reclamado por descendentes de imigrantes irlandeses (Hibernian) e de um clube de dança local (Heart of Midlothian).
Esta quarta-feira (19h45), os dois "velhos" rivais da histórica cidade de Edimburgo voltam a cruzar destinos pela 338.ª vez em competições oficiais e pela 663.ª vez desde... 1875. Considerada uma das joias do futebol escocês, o dérbi da capital é, simultaneamente, um dos mais antigos do mundo. O primeiro, em 1875, jogou-se em pleno dia de natal, com a vitória a 'cair' para o lado do Hearts (1-0). Desde então, Hearts e Hibs têm escrito capítulos intensos «de uma rivalidade imensa.»
As citações desta reportagem pertencem a José Gonçalves, antigo internacional sub-21 português e ex-jogador do Hearts. O antigo defesa, de 38 anos, passou três temporadas na Escócia onde viveu sete dérbis por dentro: «Tenho muitas memórias boas», revela ao zerozero. «Mas a melhor é a meia-final da Taça da Escócia, em 2006, quando jogámos em Glasgow. Foi uma intensidade de jogo impressionante, com o estádio completamente cheio com adeptos das duas equipas, mas mais do Hearts», recorda José Gonçalves.
Duelos gloriosos na Taça da Escócia, tardes e noites memoráveis na Premiership escocesa mas também encontros na segunda divisão ou em eventos "particulares". A história do dérbi espalha-se no tempo e escreve-se em diferentes contextos, como por exemplo os 94 encontros realizados no dia de ano novo.
Essa tradição, interrompida em anos mais recentes devido a questões de calendário, é parte integrante do legado de ambos os clubes e motivo de histórias sui generis, como a do dia 1 de janeiro de 1940. Com o estádio de Easter Road (Hibernian) coberto por uma manta de nevoeiro, o gabinete de guerra britânico ordenou que o jogo se realizasse sem restrições, apesar da visibilidade ser nula. Atendendo ao facto de o encontro ser transmitido pela BBC Radio, a intenção foi a de não alertar a força aérea alemã para as más condições de visibilidade e, com isso, induzir o inimigo em erro.
Esse dérbi acabou por assumir contornos de lenda no futebol escocês, também porque Bob Kingsley, o comentador destacado pela BBC para essa partida, perante a falta de visibilidade para o relvado, decidiu criar uma narração fictícia durante a partida por forma a manter a aparência de normalidade na transmissão.
Recuperando as palavras de José Gonçalves que abrem este texto sobre o ambiente no Tynecastle Park, o estádio do Hearts onde terá lugar o dérbi desta quarta-feira, a justificação assenta, por um lado, na arquitetura do recinto e, por outro, na paixão das pessoas: «Os adeptos ficam muito perto do relvado e isso influencia muito os jogadores; há muita pressão sobre o árbitro e sobre os jogadores adversários e muito barulho no Tynecastle, é impressionante», conta o ex-jogador ao zerozero.
Como em tantas outras rivalidades entre vizinhos, há particularidades que ajudam a crivar as diferenças e a convivência entre os dois lados da cidade. No caso de Hearts e Hibernian, um dos rituais envolve um ato pouco higiénico mas profundamente enraizado na cultura dos dois clubes e, sobretudo, da própria cidade. O símbolo do Heart of Midlothian - clube - foi inspirado no coração com o mesmo nome empedrado na famosa Royal Mile de Edimburgo desde 1561. O coração de granito perdurou no tempo, mesmo depois do edifício adjacente, onde os habitantes pagavam as suas multas, ter sido demolido e, com ele, nasceu a superstição de... cuspirem no "coração" para dar sorte.
Esse ritual não tardou a ser integrado na rotina dos adeptos de ambos os clubes, com os apoiantes do Hearts a manterem a tradição "original" de cuspir no símbolo de pedra com o intuito de chamar a fortuna e os do Hibernian, qual inversão do feitiço, para mostrar desprezo pelo maior rival da cidade.
Na experiência de José Gonçalves, que não perdeu nenhum dos sete dérbis em que participou, o aspeto mais marcante é a sensação de pertença dos adeptos: «Em semana de dérbi, os níveis de concentração eram sempre mais elevados. Quando ias tomar um café ou às compras, os adeptos só te falavam sobre isso. Tentam motivar-te e explicar-te o porquê de o dérbi ser tão importante. Há uma ligação familiar, de várias gerações, ao Hearts; para eles, o clube é o máximo. Há esse sentimento de passar o amor ao clube de geração em geração e isso é algo muito lindo e que eu gosto», admite.
E porque em Edimburgo, de ambos os lados da cidade, a relação sentimental é imperial, o início dos anos 90 do século passado marcou um dos períodos mais tensos na relação entre os clubes e, especialmente, entre os adeptos. Isto porque Wallace Mercer, presidente do Hearts à data, tentou adquirir o grande rival, mergulhado numa grave crise financeira. Essa manifestação de intenção provocou um escalar de tensão entre os dois lados que culminou com uma invasão de campo e confrontos violentos em pleno relvado no dérbi do dia 15 de setembro de 1990, em Easter Road, a casa do Hibernian.
Dos clássicos de ano novo às cuspidelas supersticiosas, o dérbi de Edimburgo mantém, ao dia de hoje, o seu encanto intacto. Sem o peso religioso do "Old Firm", os duelos entre Hearts e Hibernian servem, sobretudo, para reclamar superioridade no território comum da capital.
Para José Gonçalves, que passou por sete países e 13 clubes ao longo da carreira, o veredicto é claro: «O Tynecastle é o estádio e Edimburgo a cidade que eu mais gosto. Pelo respeito dos escoceses, pelo respeito do futebol, pelo barulho no estádio, a intensidade dos jogos... Eu amo tudo isso. O Tynecastle é como um monumento para mim», termina.
1-1 | ||
Lawrence Shankland 45' (g.p.) | Emiliano Marcondes 28' |