Tinha José Nélson de Almeida Moutinho os seus 19/20 aninhos quando decidiu deixar a formação do Benfica para pegar nas trouxas e zarpar para Portimão, nos anos 70. «Sou mais algarvio que outra coisa», confessou-nos, à distância, entre um sorriso audível. A carreira de Nélson Moutinho, natural de Oeiras, passou por outros pontos do país, mas o ar e o sol algarvios fizeram com que todas as outras hipóteses não passassem de remotas.
Volvido quase meio século, só os cabelos brancos, as rugas e a ferrugem nos joelhos se apresentaram como novidades, porque o futebol não saiu da vida de Nélson Moutinho. Nem tinha como. Afinal, é pai de Nélson, de João, o mais famoso, de David e de Alexandre. Todos eles seguiram as pisadas do pai, todos eles provas vivas do legado da família Moutinho na região do Algarve.
Quando o futebol ferve no sangue, pouco ou nada há a fazer. Por isso, o legado transportou-se para uma escola: AEF João Moutinho. É João, o craque reconhecido internacionalmente, que dá o nome, mas o projeto é tudo menos de um homem só. Pelo contrário, é agregador. E nasceu pela insistência de um ilustre.
«A escola nasceu de uma insistência de um grande amigo meu, que infelizmente já faleceu. O Neno. Foi meu colega de equipa [no Barreirense]. Ele dizia-me: ‘Com a tua personalidade e temperamento devias abrir uma escola de futebol no Algarve’. Eu tanto pensei nisso que acabei por abrir. Era uma pessoa incrível, com uma educação e uma forma de estar extraordinárias. Foi ele que me incentivou a fazê-lo», contou, ao zerozero, Nélson Moutinho, presidente e treinador dos seniores.
«O João [Moutinho] começou a ter protagonismo a nível nacional e optámos pela mudança de nome. Aos estarmos em Lagoa, não faria sentido continuarmos com o nome de Escola de Futebol de Portimão. Por isso, em 2008, decidimos mudar. Como toda a gente sabe, o João tem uma forma de estar extraordinária, é extremamente generoso e penso que todas a crianças gostavam de ser como ele e de chegar onde ele chegou. Achámos por bem fazer isso e deu certo», acrescentou.
A «vida» de João «não permite» que este seja parte ativa, mas nunca deixa de perguntar em conversa com a família: «Pergunta sempre como correu, se bem ou mal. Quando vem cá, está connosco. Quando surge a oportunidade de ir à Escola fica o dia todo a tirar fotografias com as crianças, com os pais… É de uma generosidade incrível. Eu não conseguiria estar tanto tempo [risos]».
João Moutinho, aos 36 anos, é um homem feito. Passou por grandes clubes, venceu imensos títulos e construiu uma carreira de respeito. Profissional exemplar, cuja educação foi-se refletindo e exprimindo com uma bola nos pés, ao longo do tempo. Usando, como base, esses bons princípios, a função da AEF João Moutinho passou a ser a de «promover o cidadão». Transformar «crianças» em «homens», tudo envolvido num processo gradual e contínuo: formar mais «Joões Moutinhos».
«A nossa intenção/preocupação tem a ver exatamente com a promoção do cidadão. Falando do cidadão como atleta. Fazemos tudo o que está no nosso alcance para educar as crianças dos quatro anos aos 16. Educá-las como cidadãs. É extremamente importante, até porque isso vai-se refletir na forma como olham para o futebol. Se houver educação, compromisso…», explicou Nélson Moutinho ao nosso jornal.
O futebol é de todos e para todos. Sem esquecer o «ADN de vitória», obviamente: «A nossa intenção é que todos têm que jogar, tendo consciência – e falamos disso aos pais – que não jogam todos o mesmo tempo. Fazemos tudo o que esteja ao nosso alcance para que todos possam jogar. Claro que, e até porque é uma questão humana e eu não posso fugir dela, fazemos tudo para ganhar os jogos», apontou o dirigente.
«Ninguém gosta de perder ou empatar. Mas o nosso princípio é sempre esse: educação e moldar uma forma de estar que se reflete, depois, na ação desportiva. É importante que todos saibam que jogam um bocadinho e que, ao mesmo tempo, saibam existem elementos com mais capacidades. Por isso, têm que lutar para chegar ao mesmo patamar de outros colegas. E isso só funciona com trabalho e dedicação», acrescentou.
A conversa estende-se e o Sr. Nélson expressa uma felicidade contagiante: «Recebemos três aparelhos de fisioterapia, graças ao patrocínio da Clínica Dentária de Pêra, o que nos dá outro conforto nessa área para que possamos tratar os nossos atletas. Temos o nosso espaço e as nossas ferramentas dentro do posto médico da Câmara Municipal de Lagoa. Foi das melhores notícias que recebi.»
A «distinção entre formação e seniores» é pensada e os apoios recebidos são distribuídos sem qualquer mistura. Os desafios são vários e o principal «prende-se com o espaço»: «A Câmara Municipal de Lagoa tem sido inexcedível e quase tudo o que pedimos, temos. Há coisas, no entanto, que são impossíveis. Se tivéssemos um campo de futebol de 11 só nosso, éramos capazes de melhorar imenso. Futebol de 11 estamos sujeitos a meio-campo, no de nove a meio-campo do meio-campo e, no de sete, igualmente.»
João Moutinho 15 títulos oficiais |
Nunca havia «passado pela cabeça» de Nélson criar equipa sénior. Nem juvenis, nem juniores. Mas tudo se construiu. A pandemia e as suas restrições fizeram com que a Escola «parasse por completo» durante um determinado período, mas a «qualidade dos atletas» era evidente: «Achámos por bem, por influência de jogadores, diretores e pais, entrar nos sub-23. Ou seja, não criámos equipa de juniores e todos passaram a sub-23.»
A aventura durou pouco devido... ao sucesso. Os sub-23, sob a liderança de Nélson Moutinho, foram campeões e voaram logo para outro patamar, elevando a AEF João Moutinho para os quadros das distritais.
«Sabíamos que tínhamos uma equipa recheada de bons valores, que podem atingir outros patamares. Logo no primeiro ano de sub-23, fomos campeões. Modéstia à parte, tínhamos consciência de que, como tínhamos ganho o título, tudo poderia ser negativo em relação a 2022/23 por causa da exigência. Decidimos, portanto, dar um novo estímulo, criando a equipa sénior e disputando a segunda divisão regional», explicou o mister.
A juventude, agora com mais barba e cabelo, trabalha junta desde outros escalões e vai atraindo outros olhares: «Só não deixo sair – e coloco aqui o ‘não deixo’ entre aspas – se um jogador quiser abandonar para ficar no mesmo patamar. Mas o atleta é livre de fazer o que quiser, obviamente. Queremos colocar jogadores nos campeonatos profissionais. Mas eles têm de mostrar o que valem. Eu não vou falar com A ou B para dar um jeitinho. No fim, tudo depende dos atletas. São donos dos seus próprios destinos.»
Nélson Moutinho não sabe se «há alguém no distrito de Faro» com mais títulos do que o próprio entre formação e seniores: «Creio que são já são quatro ou cinco títulos [risos]», mas, esta época, o destino tramou-lhe algo belíssimo. Teve a oportunidade de perder contra... Nélson Moutinho. Sim, precisamente. O filho mais velho, treinador do Carvoeiro United, venceu por 0-2 a AEF João Moutinho e a confirmação foi a de que não existiram picardias: «Se o cumprimentei? Claro que sim [risos]. Ainda por cima, ele ganhou bem. Ele conhece os meus jogadores, treinou-os nos juvenis e, mais tarde, decidiu iniciar o seu percurso. Dentro do campo somos adversários.»
«O Alexandre veio para aqui e aceitou vir para o escalão mais baixo do futebol português com toda a humildade. Vai trabalhando, tem consciência do valor dele e, sobretudo, onde está. É médio-ofensivo. É rápido, tem um remate extraordinário e uma visão de jogo ótima, tal como o seu pé esquerdo. Joga de trás para a frente e tem facilidade em entrar na área. O que interessa, acima de tudo, é ele sentir-se feliz neste regresso a casa», salientou o progenitor, confessando que «não é difícil treinar um dos seus», mas que, «inconscientemente», «exige mais» do mais novo da família Moutinho.
À conversa juntou-se, precisamente, o craque em questão. Pela voz de Alexandre, os motivos do regresso foram revelados.
Um obrigado não chega ❤️ pic.twitter.com/duHrVDCqEq
— Alexandre Moutinho (@Amoutinho8) June 1, 2022
«Eu voltei depois de certos problemas com o Boavista e não tínhamos grandes opções porque a época já estava em andamento e as equipas estavam muito fechadas. Arranjar um clube a meio era complicado. Falei com os pais e com os meus irmãos para reunir opiniões. São pessoas mais experientes do que eu. O meu pai encorajou-me a vir e a pensar mais à frente. Disse-me ‘só dizeres que és irmão do João Moutinho não dá, tens de apresentar resultados’. E foi muito por aí. Obviamente sabia que podia ajudar este projeto e ele a mim», detalhou o jovem médio.
A veia goleadora justifica-se, segundo o próprio, com «trabalho de equipa» e «com mérito próprio», uma vez que «foi aperfeiçoando o seu jogo» e «descobriu o que faltava» para empurrar a bola «lá para dentro». Os conselhos do irmão João vêm de Inglaterra com carinho, mesmo que a competitividade «em todos os desportos» seja grande entre ambos.
«Já falámos menos, mas ao longo do tempo foi crescendo e percebendo com quem me deveria dar no mundo do futebol. Ou, então, quem deveria ouvir. Sempre olhei para o meu irmão [João Moutinho] como uma referência pelas minhas posições e por certas características. Ele liga sempre ao meu pai antes dos jogos. Ele tem jogo e, seja onde for, liga sempre com uma ou duas horas de antecedência. E eu também ganhei esse hábito. Muitas vezes falava com ele e perguntava-lhe o que devia fazer ou que devia ter feito e não fiz. Quando ele cá está, aproveito para observá-lo noutros desportos. Não só no futebol. Somos os dois muito competitivos. Ele é bom em quase todos os desportos, tenho de estar atento a todos os detalhes a ver se lhe consigo ganhar no padel [risos]», reconheceu.A veia goleadora já chamou à atenção do Moncarapachense (Liga 3) e de um clube norte-americano. Do Algarve a Inglaterra é um saltinho e as rotas estão estabelecidas a partir de Faro: «Uma chamada do João para me mudar para lá? Porque não? Eu ia, sem problema algum!»