Andámos desencontrados um par de vezes. Sempre que lhe ligávamos, admitia que estava ocupado com «problemas que nem sabia que existiam» e que, por isso, o impediam de falar naquele momento. Quando não eram esses problemas a impedir, eram questões do dia a dia. «Ligou-me enquanto estou a fazer compras. Tem que ser, senão ralham comigo lá em casa.»
Apesar disso, transparecia sempre um sorriso na voz e ia brincando com as situações: «Se não me rir dos problemas, coitado de mim», disse-nos algumas vezes, entre temas, sempre com boa disposição. A alegria e honestidade do discurso misturam-se facilmente com a experiência na voz de Manuel Cajuda, que nos abriu as portas numa altura de mudança na sua vida.
Foi há cerca de cinco meses que decidiu acabar uma carreira de 40 anos nos bancos de suplentes e mudar de rumo, tudo aos 72 anos, para assumir a presidência do «seu» Olhanense, que hoje «está em coma», com um «prognóstico mais aliviado, mas ainda preocupante». Assumiu esse cargo em junho e dois meses passaram desde então. A vida mudou para Manuel, os problemas são outros e o objetivo também: salvar o clube do coração.
Zerozero (ZZ): Em 2020 ainda treinava, no Leixões. Esteve algum tempo parado e este ano surge esta novidade. Quando decidiu deixar definitivamente a vida de treinador?
Manuel Cajuda (MC): Deixar a vida de treinador é uma decisão unipessoal e surge no dia 25 de março de 2023, no dia em que iniciei a minha carreira de treinador, 40 anos antes, no Estádio das Antas, frente ao FC Porto (7-1). Vários motivos levaram-me a deixar. Há que dar lugar aos novos. Depois, queria evitar algumas coisas que começava a ouvir, como que era um treinador antigo, não usava os adjetivos modernos do futebol e que não acompanhava a evolução. Achava que estava tudo enganado, porque os livros e jornais que leio hoje, não são os de há 25 anos. Só se fosse estúpido é que não conseguia acompanhar a evolução. É demolidor ouvir isso e decidi parar, antes de ouvir mandarem-me para casa. Se eu estou velho para treinar, como é que agora posso gerir um clube? É que, hoje em dia, treinar uma equipa de futebol é cada vez mais fácil, porque posso acompanhar a minha teorização e experiência do treino, com uma equipa técnica grande. Uma pessoa paga a um treinador pela sua experiência e ciência técnica. Em Portugal, isso não é possível, por falta de capacidade dos presidentes. Estou velho para orientar uma equipa num treino, mas não estou velho para orientar uma série de problemas que os clubes vivem.
ZZ: E quando é que pensou em seguir a presidência e logo do «seu» Olhanense?
MC: Passando, agora, mais tempo no Algarve, apercebi-me da enorme dificuldade que o clube da minha terra estava a passar. Nem de longe, nem de perto, alguma vez imaginei que os problemas fossem tão graves. Começou a haver um movimento a desafiar-me para assumir e depois com a minha família, principalmente o meu filho mais velho, a dizer que tinha que dar a mão ao Olhanense. Tudo começa num movimento nas redes sociais a dizer que eu era a pessoa indicada para tomar conta do clube. Inicialmente, o meu filho não gostou da ideia e disse que queria era que eu fosse passear com a mãe, mas passado 15 dias disse-me que tinha chegado à conclusão que eu era a única pessoa capaz de salvar o Olhanense. Eu pensei “há tanta gente em Olhão para salvar o Olhanense…”. Vendo o movimento crescer, disse que só avançaria se a família me apoiasse e apoiaram, mas a minha mulher disse logo “vai sobrar para mim outra vez” [risos], com aquele sorriso engraçado que ela tem. Também queria que a Câmara Municipal de Olhão me apoiasse e fui falar com o presidente da Câmara para perceber se, dentro dos princípios legais normais, podiam ajudar o Olhanense a continuar a viver. A única parceria que tenho é com a Câmara, dentro do que me podem dar legalmente. Não quero que tenham problemas. Tenho ali o melhor sócio do Olhanense, dentro do que é possível. Disseram que eu era um homem de coragem, mas o que me faltou foi coragem para dizer não ao Olhanense. Daí, ver-me na situação de presidente, que é algo que me deixa feliz no ego pessoal. Sou dos muitos poucos casos em que se é atleta, treinador e presidente do mesmo clube…
ZZ: Esse passado ajuda nesta nova função?
ZZ: É mais difícil ser presidente do que treinador?
MC: Não digo que seja mais difícil. É diferente. Enquanto como treinador tinha que gerir e dar a cara publicamente por 20 e tal jogadores, era examinado todas as semanas. Todas as semanas ia a exame. Umas vezes que reprovava, outras passava à rasquinha e outras passava com distinção. Mas era examinado todas as semanas e tinha 20 personalidades, diferentes culturas e nacionalidades. O presidente agora tem vários departamentos para gerir, tem problemas que nunca me bati com eles, mas não insolúveis. Não quero confundir as missões. Com o prestígio que tive como treinador, qualquer coisa que diga pode condicionar o meu treinador e isso nunca pode acontecer. Até porque os problemas são completamente diferentes. Se há alguém que não tenha problemas durante o dia, é um felizardo, mas não acredito que haja. Todos têm.
Manuel Cajuda Olhanense Total |
ZZ: Disse, em entrevista à agência Lusa, que o clube estava em coma, com prognóstico muito reservado. Porque diz isto?
MC: Já passaram dois meses. O prognóstico melhorou. Com o respeito que tenho por todos os outros clubes, mas principalmente aqueles que representei enquanto jogador e treinador, ninguém ficará aborrecido se eu disser que o do coração é o Olhanense. Nasci aqui. O Olhanense demonstra, na história do futebol algarvio, que aí teve a hegemonia por mais de 60 anos. Foi campeão de Portugal há precisamente 100 anos. Foi campeão da 2ª divisão, da 3ª divisão. Provavelmente é o único clube de se poder orgulhar destes três títulos. O Benfica, Sporting e FC Porto nunca foram campeões da 3ª divisão, para felicidade deles, mas o Olhanense foi campeão de Portugal, com todo o mérito, em 1923/24. O futuro do Olhanense é regressar ao passado. O Olhanense está tão mal, que o melhor é regressar ao passado, que foi tão grande. Quando voltarmos a ser grandes, é encarar o futuro com outra perspetiva.
A conversa vai longa, mas boa. Manuel Cajuda faz uma pequena pausa para perceber o que estão fazer os seus dois cães, por quem se nota ter uma forte ligação, que lhe iam fazendo companhia enquanto falávamos. Contudo, não perde a linha de raciocínio e explica melhor a frágil situação em que o emblema de Olhão se encontra.
MC: Quando digo que que o Olhanense está em coma, mas com prognóstico muito reservado, embora agora mais aliviado, é que, primeiro, o Olhanense Clube não tem dívidas. O Olhanense tem um acordo com as Finanças, Segurança Social e seus credores que está a cumprir religiosamente todos os meses. O Olhanense SAD é que tem sido problemático para o Olhanense. Tivemos que renunciar com o protocolo que existia com a SAD, para acabar com os contratos de utilização do estádio e todas essas situações, até que a SAD resolva, ou não, os seus problemas, porque o Olhanense não tem ligação à SAD há três ou quatro anos. Não deve ser responsabilizado pelas suas situações. Por estes problemas criados pela SAD, o Olhanense não consegue receber subsídios camarários, nem nada de nada, não consegue inscrever uma equipa de futebol sénior…ou melhor, consegue, mas se inscrever, assume os direitos desportivos e dívidas da SAD e eu, como presidente, não me interessa isso. É um preço muito caro. Temos futebol de formação, nesta altura, que é a nossa jóia da coroa. Olhão é uma terra de futebol. São muitos os talentos que saíram daqui e basta olhar para o Gonçalo Ramos, que foi o último a sair. Se Olhão ficar sem futebol, é um sismo que passa por aqui a nível desportivo. Tenho uma esperança grande. Há vários clubes em Olhão que querem fazer uma equipa sénior e na qual o Olhanense ajudará em todo. A cidade precisa e o Olhanense tem, neste momento, a obrigação de devolver a si mesmo a cidade. Terá que fazer tudo para a cidade ter futebol sénior e há aqui muitos clubes. Se houver insolvência, demorará dois/três anos para se resolver e o Olhanense não pode ficar esse tempo à espera. Temos um estádio bom, com condições que ainda vão ser melhoradas, e se alguém precisar do nosso estádio para jogar, não vamos dizer que não. Não vou plantar batatas no campo, por isso venham jogar futebol para aqui. O futebol sénior está condicionado e o preço que tínhamos a pagar era a morte, por isso tivemos que abdicar e vamos ajudar qualquer equipa do concelho. Um dos propósitos que tenho como presidente é valorizar o desporto do Olhanense, seja ele o Ginásio Olhanense ou outros clubes. O Olhanense ajudará na melhoria do desporto no concelho, seja de que forma for. Ainda há dias festejámos o 41º aniversário do FC Bias e pedi ao presidente para fazer do Olhanense sócio do Bias. É uma maneira de colaborar. Acho que nunca se viu algo assim. Há muita coisa por fazer no futebol, com humildade. Se um dia nos defrontarmos, vamos dar tudo para vencer, mas cá fora temos que ter classe.
ZZ: Vimos rapidamente esta descida do Olhanense da Primeira Liga até aos distritais. A que acha que se deveu isto? Como viu, de fora, estes anos?
MC: É evidente que o Olhanense há oito anos [nove] estava na Primeira Liga. Hoje, está nas distritais. É uma queda enorme. Ainda hoje a Rádio Renascença pediu-me uma opinião sobre os investimentos estrangeiros no futebol português. Não me interessa se são estrangeiros ou nacionais, interessa é serem investimentos. Depois, interessa ver se há uma boa, ou má, gestão do investimento. No caso do Olhanense, parece-me claro que transparece que nos últimos 10 anos, a gestão financeira e desportiva foi verdadeiramente uma vergonha. Só assim se explica este salto enorme da primeira divisão para a última. Isto não acontece por milagre. Vieram uns senhores de Itália e a junção do Olhanense SAD e clube foi demolidora para o Olhanense, que tem uma história enorme, e para uma SAD, que nem contas consegue apresentar desde 2020. Isto é catastrófico. Tenho dois meses de presidente e quando entrei, a primeira coisa que fiz foi reunir com a SAD do Olhanense para encontrar soluções, mas todas prejudicavam o Olhanense e eu não aceitei nenhuma. Acabámos por nos afastar, com educação, porque tenho respeito e admiração pelo presidente da SAD. Tomámos a decisão de seguir caminho sozinhos. Tenho a missão de esclarecer aos sócios do Olhanense e o Conselho Consultivo servirá para isso, porque quero ouvir opiniões e críticas. Vou fazer uma sessão de esclarecimento, porque o clube não é meu e quero que o clube volte para a cidade e ande na rua. Quero ver camisolas do Olhanense nos mercados, como tenho visto ultimamente. Antigamente só via do Benfica, Sporting e FC Porto. Isso dá-me alegria.
ZZ: Tem faltado essa ligação entre adeptos e clube nos últimos anos?
MC: Sim. Eu vou pedir para alterar uma série de questões administrativas, como dar o nome de Conselho Consultivo e os estatutos, porque apenas me permitem estar dois anos e daqui a nada saio. Quando estiver quase bom presidente, estou a sair. Nomeámos uma comissão para dignificar o título de campeão de Portugal, vamos ter palestras, eventos e vou escrever no estádio uma frase que vai aumentar o respeito de muita gente, a dizer “Aqui mora o Campeão de Portugal”. Queremos uma organização que esteja constantemente em ligação com os sócios, que vai começar em breve. As empresas no concelho de Olhão estão a responder bem, os sócios voltaram. Não todos, mas voltaram 200 nestes dois meses. Cada um que volta, é uma vitória. Cada sócio novo, é outra vitória. Quero dar uma palavra aos que nunca desistiram, a quem hoje só posso dar gratidão, em nome da minha direção e do Olhanense. Eu próprio deixei de ser sócio do Olhanense que, na minha opinião, tive razões para tal e tinha um processo contra o clube, mas decidi perdoar e ofereci o resto dos pagamentos que me tinham a fazer. Todos têm que dar algo ao clube. Agora, é um coma preocupante ainda, mas menos.
MC: Gostava que o Olhanense voltasse ao passado e tivesse todas as liberdades de disputar as provas em Portugal, como sempre disputou, e voltar à Primeira Divisão. É evidente que em dois anos não consigo. É impossível. É preciso, no mínimo, cinco anos. Vou pedir aos adeptos para prolongar o mandato de dois para quatro anos e daqui a quatro anos quero devolver ao Olhanense e à cidade um clube com condições estruturais, infraestruturais e organizativos capaz de voltar a ser o que já foi. As pessoas pedem para voltarmos à Primeira Divisão, mas isso leva, no mínimo e a correr tudo muito bem, cinco anos. Quando eu começar a perceber o que é ser presidente, estou de saída. Com estes estatutos ultrapassados, de há 20 anos, não vamos a lado nenhum. Se tiver que sair daqui a dois anos, vou ter pena, porque deixo uma obra por acabar. Já tive essa experiência quando saí do Vitória SC, porque não me deixaram acabar a minha obra, e não perdoo as pessoas que não mo deixaram acabar. Fui buscar o Vitória SC à Segunda Divisão, ao 8º ou 9º lugar, e levei-o às pré-eliminatórias da Champions League. Quando me preparava para colocar o quadro que pintei na moldura, partiram-me a moldura. Não quero que me volte a acontecer o mesmo como dirigente. No dia em que sentir que não posso fazer o que sonho para o Olhanense, dou o lugar a outro. Sou muito amigo do Isidoro, antigo presidente. Fez muitas boas, também fez más. Estou solidário com ele, porque os últimos dois anos devem ter sido terríveis ao nível de gestão. Não tenho problemas em falar com ele e até já pedi ajuda em alguns casos, para me aconselhar, até pela experiência que tive como treinador. Treinei algumas equipas em que os presidentes eram contra o poder local e cheguei à conclusão que todos perdiam com isso. Este clube nunca será utilizado no aspeto político, ninguém é obrigado a escolher partidos políticos e todos têm voz.
ZZ: Alguma vez aquele jovem que cresceu em Olhão sonhava em presidir um dos maiores clubes da região um dia? Qual a sensação?
MC: Pode ser ignorância da minha parte, mas provavelmente serei o único que teve o prazer de jogar, treinar e, agora, presidir o mesmo clube. Há uns dias surgiu a comparação com o Rui Costa, e eu adoro-o. Todos sabem que sou benfiquista. Tenho grande respeito, enorme, pelo FC Porto e Sporting, mas deu-me a pancada para ali [risos]. Mas o Rui Costa nunca foi treinador do Benfica, apenas jogador e presidente. Eu fiz o jogo 500 na Primeira Divisão como treinador do Olhanense, que foi algo que sempre procurei. Ninguém se deve sentir mais orgulhoso do que eu por ter passado por estas fazes e por, agora sim, ter tido a coragem de ter assumido o Olhanense. O Olhanense a continuar como estava, não durava mais de seis meses. Era uma situação mesmo delicada. Há dias diziam que os meus melhores anos e de glória foi quando estive 20 e tal anos na Primeira Divisão e eu disse-lhes que estavam completamente enganados, porque os melhores anos da minha vida são os que ainda tenho para viver. O melhor que quero para o Olhanense é o melhor que o Olhanense ainda tem por fazer. Aí, já sou um gajo feliz.