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      Uma figura histórica no futebol português

      Acácio fez os primeiros golos em Democracia: «Paguei 20 contos para fugir à guerra»

      O Estado Novo cai, o povo sai às ruas, a Revolução dos Cravos decepa a ditadura mais velha da Europa. Dois dias depois, 27 de abril de 1974, a Taça de Portugal joga-se no Bessa e na Tapadinha, à mesma hora. Primeiros jogos em Democracia, sensações estranhas, a turba ainda a apalpar terreno.

      Acácio Casimiro entra nessa tarde para a história do futebol. É ele o autor dos dois primeiros golos no pós-25 de abril, aos 12 e aos 33 minutos do Boavista-Famalicão. Médio vigoroso, ambidextro, passa cinco anos de xadrez ao peito e ganha duas Taças de Portugal. Meio século depois, senta-se à conversa com o zerozero. Um Senhor, em maiúsculas, de 75 anos e muitas vidas por contar. 

      zerozero – O Acácio Casimiro fez dois golos no dia 27 de abril, mas antes há a pergunta sacramental: onde estava no dia 25 de abril de 1974?

      Acácio Casimiro – Bem, acordei cedo para ir treinar ao Bessa. Eu morava em Espinho, ouvia sempre as notícias de manhã e escutei tudo na cozinha. Falavam de um golpe de estado e na marcha de militares sobre Lisboa. Não dava nada na televisão, não havia música na rádio, só notícias sobre o golpe militar. Para mim era tudo estranho, tenho de ser honesto. Poucos de nós eram politizados, não havia muita gente no futebol com consciência sobre as injustiças que grassavam em Portugal. O mais efervescente, no bom sentido, era o António Alberto Teixeira, hoje dono da Ibersol. Ele falava muito connosco, pertencia à UDP e esclarecia-nos. Eu até acho que ele hoje é do CDS, deu a volta completa (risos).

      zz – O balneário do Boavista seguia esses ensinamentos do António Alberto?

      AC – Todos menos um, o Taí. Ele era de Amarante, de uma família abastada e já na altura, em jeito de brincadeira, o António Alberto chamava-lhe fascista. Mas nós éramos tão impreparados e ignorantes que só nos ríamos com aquilo.

      qO FC Porto raptou-me e meteu-me 15 dias no Hotel Nave, na Av. Fernão Magalhães. Mas não conseguiu arranjar dinheiro para me comprar. Foi quando o Valentim Loureiro apareceu em Espinho. Fui para o Boavista ganhar sete contos por mês
      Acácio Casimiro
      zz – Mesmo assim, fez-se à estrada para ir ao treino no Porto?

      AC – Sim, fui para o Porto no meu carro e a coisa podia ter dado para o torto. Mas tive um pressentimento de que alguma coisa má podia acontecer e preveni-me.

      zz – O que fez o Acácio?

      zz – Não sei por alma de quem, mas fui ao guarda-fatos e peguei no meu casaco de couro verde, da tropa. Eu tinha saído do serviço militar em outubro de 73, depois de 40 meses lá. Era o responsável por alimentar diariamente 800 homens, antes deles embarcarem para o Ultramar. Nunca estudei tanto como na tropa. Tinha 14 disciplinas. Cheguei a alferes e até fui mobilizado para Angola.

      zz – Esteve no Ultramar?

      AC – Não, não, tive muita sorte e safei-me. Eu estava colocado no quartel de Gaia e vivia em Espinho. Um colega meu vivia em Gaia e estava colocado em Espinho. Fizemos uma troca e metemos os papéis para mudarmos de quartel. Antes disso acontecer, o meu nome apareceu nas listas para Angola. Expliquei a esse meu colega que já não podíamos fazer a troca e ele ficou todo chateado. Bem, a verdade é que ele precisava de dinheiro e estava disponível a ir para Angola no meu lugar.

      zz – E conseguiram reverter a decisão?

      AC – Não foi simples, porque ainda havia outro soldado metido ao barulho, que também queria trocar com ele. Aquilo foi quase um leilão. Em resumo: paguei 20 contos [20 mil escudos – 100 euros] para fugir à guerra. Foi o meu tal colega para Angola, é impressionante. A minha mãe até já chorava. Ficou toda feliz quando lhe disse que tinha conseguido livrar-me da guerra.

      zz – Quanto é que ganhava no SC Espinho mensalmente, nessa altura?

      AC – 1500 escudos. E era dos mais bem pagos. 20 mil escudos era uma pequena fortuna. Nessa altura, estamos a falar de 1970, o FC Porto já me tinha tentado contratar e o Boavista também já oferecia 30 mil escudos e quatro futebolistas ao SC Espinho pelos meus serviços.

      zz – Não quis jogar no FC Porto?

      AC – Eu quis, mas o clube não teve dinheiro para mim e acabei mesmo no Boavista. O senhor Pinto de Sousa, vice-presidente do clube, foi a Espinho e avançou com dinheiro da própria empresa dele, a Fapobol, para me contratar. Bem, foi uma situação muito complicada, porque metia futebol, clubes e depois a tropa e a ida para Angola. E ainda um rapto.

      zz – Um rapto?

      AC – O FC Porto raptou-me e meteu-me 15 dias no Hotel Nave, na Constituição. Mas não conseguiu arranjar dinheiro para me comprar. Foi quando o Valentim Loureiro apareceu em Espinho. Fui para o Boavista ganhar sete contos por mês e recebi 20 contos de ‘luvas’. Usei esses 20 contos para pagar a minha fuga à guerra. Porque, entretanto, o Espinho tinha-me adiantado a verba. Acabou tudo bem e assinei pelo Boavista.

      zz – Acabámos por não concluir o seu 25 de abril. Pegou no casaco da tropa e, depois, a viagem correu bem?

      AC – Fui intercetado por populares da Afurada na Ponte da Arrábida. E por isso digo que o meu casaco militar me salvou. Essa malta, ao ver-me de casaco, pensou que eu era do exército e deixou-me passar. Estavam a revistar os carros todos e a mim não fizeram nada. E lá segui para o Bessa. À noite, quando voltei a Espinho, as ruas estavam cheias de gente, tudo em festa. Só aí é que celebrei à vontade, com os amigos e familiares. Procurei mais informação, porque sabia-se muito pouco. Não tem nada a ver com os dias de hoje. Olhe, em jeito de brincadeira, costumo dizer que nesse dia desapareceram os fascistas todos. De repente, ninguém era fascista em Portugal.

      «Os adeptos do Bessa testaram a paciência dos militares»

       zz – Voltemos ao 27 de abril. No segundo dia em Democracia houve mesmo jogo de futebol.  

      AC – Mas não era para haver. Não havia policiamento, nada. Mas no Boavista tínhamos um senhor que era o capitão Valentim Loureiro, hoje em dia conhecido por major, e que tinha sido colega do Otelo Saraiva de Carvalho nos Pupilos do Exército. Ora, depois de um telefonema entre ambos, o Otelo garantiu a realização do nosso jogo. ‘Não há Polícia, mas eu mando para aí o Exército’. O jogo realizou-se e ainda bem.

      zz – Na altura teve consciência de que fez história ao ser o primeiro homem a marcar no pós-25 de abril?

      AC – Não tive, honestamente não tive. Nada. Só muito recentemente é que o fiquei a saber, através de jornalistas.

      zz – Falemos desses golos históricos, os primeiros do Portugal democrático. Lembra-se de ambos?

      Acácio Casimiro
      2 títulos oficiais

      AC – Lembro-me sobretudo do primeiro. O Salvador fez um cruzamento em arco, na esquerda, a bola sobrevoou a área e eu estava na quina do outro lado. Vim para dentro, deixei a bola bater uma vez e dei-lhe uma trivelada. Entrou no ângulo contrário, foi um golaço. Do segundo lembro-me menos bem, mas sei que foi de cabeça.  

      zz – O policiamento desse histórico Boavista-Famalicão foi feito por militares?

      AC – Exatamente. Eram seis praças e um sargento. Ou tenente, agora estou na dúvida. Vieram do quartel-general da Constituição. Estávamos todos com medo, não o posso esconder. Já não tenho idade para me armar em forte. Reparem bem: nós fomos para um estádio cheio de gente, apenas 48 horas depois do dia da Revolução dos Cravos. Ainda não sabíamos bem de que forma a população reagiria a esta mudança. Estávamos borradinhos, essa é a verdade.

      zz – Como estava o ambiente no Bessa nesse dia 27 de abril?

      AC – Os nossos jogos em casa realizavam-se aos sábados. O estádio estava sempre cheio, na altura dizia-se que o meu Boavista era a equipa que melhor jogava em Portugal, tanto com o treinador Aymoré Moreira como, a seguir, com o José Maria Pedroto. Até ganhámos duas Taças de Portugal, uma ao Benfica em 1975 e outra ao Vitória de Guimarães em 1976. Tivemos equipas fantásticas com o Salvador, o Mané, o Mário João, já para não falar de mim (risos). Nessa tarde, os adeptos do Boavista vieram para cima das linhas de jogo, quase dentro do campo. Quiseram testar a paciência dos militares. Galgaram a vedação e viram o jogo ali mesmo em cima. Tinham de se desviar de mim, quando eu ia fazer lançamentos laterais.

      «Ia de burra até casa dos meus avós nas férias»

      zz – As crónicas da época elogiam muito o seu pé esquerdo.

      AC – O direito não era pior. Eu era ambidextro, rematava facilmente com o direito ou o esquerdo. Mas jogava mais a médio esquerdo e usava, por isso, mais o pé esquerdo, é verdade. E era inteligente, julgo eu. Aliás, eu iniciei o meu percurso de treinador quando o Mário Wilson saiu do Boavista e o João Alves assumiu o comando da equipa. Ele chamou-me e disse-me para ser o braço direito dele e ajudá-lo o mais possível. Curiosamente, depois do 25 de abril o crescimento do Boavista foi galopante.

      zz – Sentiram essa mudança dentro do clube?

      AC – Muito, muito. E em tudo: condições dos campos, salários, até na organização para as viagens aos jogos europeus. Ainda outro dia me perguntaram qual o melhor futebolista que defrontei e eu respondi ‘Kenny Dalglish’. Ele ainda jogava no Celtic, em Glasgow. Aliás, fomos eliminados pelos escoceses e muito mal eliminados. O árbitro estava num dia mau.

      zz – Onde nasceu o Acácio?

      AC – Em Mogadouro, Trás-os-Montes. E aos dez dias de vida mudei-me para Bragança e dois anos depois para Macedo de Cavaleiros. Aos quatro fui para Duas Igrejas, em Miranda do Douro, e ainda estive sete meses no Pocinho, perto da Régua. Aos seis anos é que fui viver para Espinho e por lá fiquei até 1992, quando fui trabalhar para o Estrela da Amadora. O meu pai era ferroviário e mudávamos de casa sempre que ele era promovido. Hoje vivo na Senhora da Hora, em Matosinhos.

      zz – Que memórias tem dos tempos pré-revolução?

      AC – De Trás-os-Montes muito poucas. Saí de lá ainda pequeno e depois só lá voltava de férias, para visitar os meus avós. Saíamos no comboio e eu ia de burra até casa deles, com o meu pai a pé. A pobreza era atroz, ninguém imagina. A minha família já tinha algumas condições, porque o meu pai tinha uma profissão bonita, mas o que nos rodeava era muito mau.

      zz – O futebol aparece só em Espinho?

      AC – Exatamente, aos 12 anos. Numa das épocas dos juvenis marquei 34 golos e aos 17 cheguei aos seniores, pela mão do treinador Artur Quaresma.

      zz – Como eram as condições dos futebolistas profissionais antes do 25 de abril?

      AC – Chamar profissionalismo àquilo… só com boa vontade. Eu gostava de perceber as coisas e fui cinco anos secretário do Sindicato dos Jogadores, quando o recém-falecido Artur Jorge era o presidente. Foi na nossa vigência que acabou a triste Lei de Opção. Estávamos completamente na mão dos clubes, não podíamos decidir nada. Foi uma das reivindicações no pós-25 de abril e acabámos com isso. Passámos a ter algumas leis laborais, coisa que antes não existia. Estes jovens de hoje têm de ler isto e perceber a sorte que têm. E ainda bem.

      Portugal
      Acácio Casimiro
      NomeAcácio Alfredo Casimiro
      Nascimento/Idade1949-03-24(75 anos)
      Nacionalidade
      Portugal
      Portugal
      PosiçãoMédio

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