Já o vimos mil vezes. O Bayern aparentemente ferido, caído em combate e à mercê do guerrilheiro adversário; imóvel, à espera do golpe de misericórdia. Entretanto, num truque algures entre o cinismo e a ironia, o moribundo levanta-se, anda e marca golos. O 2-2 no Emirates é a prova física mais recente do pensamento de Mark Twain em forma de equipa de futebol.
«As notícias da minha morte foram um exagero.»
Os alemães sobreviveram aos canhões londrinos e não confirmaram os receios que atormentavam toda a Baviera. Depois de cinco derrotas nos últimos dez jogos oficiais e apenas uma vitórias nas derradeiras seis partidas como visitante, o Bayern soube capitalizar a maior maturidade competitiva e agarrar-se aos dois primeiros erros do Arsenal com golos.
Equilíbrio, oscilações no controlo da bola, empate mais do que justo. As maiores emoções, os batimentos cardíacos descontrolados, ficaram para os derradeiros minutos: Kingsley Coman atirou ao poste de Neuer, Saka acabou a pedir um penálti não concedido por árbitro e VAR.
Tudo certo e para decidir em Munique, com ambas as equipas vivas. Twain lá sabia.
Da bota esquerda de Saka, incontrolável, nasceu o primeiro golo do jogo e a promessa de uma noite gloriosa para os gunners, afastados desta fase da prova há 14 anos. O remate em arco, imagem de marca, deixou Manuel Neuer mais pequeno do que nunca na estirada.
A lógica apontava num sentido e a realidade puxava-nos para o inverso. Em dois erros pouco aceitáveis neste nível, o Bayern fez dois golos e a reviravolta, sem pré-aviso ou especial juízo. Sèrge Gnabry primeiro, ao aproveitar uma recuperação de Leroy Sané - o que queria Gabriel Magalhães fazer? - e um passe do monstro Goretzka, e Harry Kane (claro) em cima do minuto 30, de penálti e contra a vítima favorita.
Nesses quase 15 minutos, o Arsenal exibiu uma debilidade raras vezes vista na era-Arteta ou, pelo menos, em 23/24. Precipitação, lapsos na construção e o Bayern, espicaçado por feridas recentes, a aproveitar tudo o que podia.
Longe da máquina demolidora de outras épocas, o Bayern leu as crónicas sobre o pragmatismo e pintou na relva a lição. Baixou as linhas, beijou o jogo com sonolência e dançou o slow com bola.
Romântico, sim, mas não do agrado de Arteta. Farto do flirt que dá em nada, o treinador foi ao banco buscar Gabriel Jesus e Leandro Trossard, e a recompensa apareceu de imediato.
Trabalho fantástico do brasileiro na área alemã, passe soberbo e tiro de primeira do belga. Contas acertadas, num jogo que pedia isso, até para manter a eliminatória salomonicamente dividida.
Nota de rodapé: o Bayern está afastado da luta pela Bundesliga e quererá apostar tudo na segunda-mão - em Londres, Goretzka e Kane foram os melhores; o Arsenal, envolvido no sonho de ganhar a Premier League, recebe o Aston Villa antes de ir a Munique.
Dados nada despiciendos.
Os avançados lançados por Mikel Arteta, Gabriel Jesus e Leandro Trossard, foram fundamentais na jogada do 2-2. Criação do brasileiro, finalização do belga, a darem justiça e um quadro mais simpático aos britânicos para a visita à Alemanha. Rendimento bem superior ao de Kai Havertz, por exemplo, que passou despercebido ao longo de 86 minutos.
David Raya saiu da baliza sem necessidade, atrapalhou Gabriel e o central colocou a bola nos pés de Leroy Sané antes do 1-1; Saliba derrubou o mesmo Sané na área e Harry Kane fez de penálti a reviravolta. Dois lapsos grosseiros do Arsenal, a inviabilizarem o bom arranque de partida dos ingleses.
Exibição praticamente perfeita do senhor Glenn Nyberg, da Suécia. No último lance do jogo, Saka pediu penálti de Neuer, mas o contacto pareceu ter sido promovido pelo atacante. Decisão aceitável, pois, ao não marcar nada.