No futebol instantâneo e rápido de hoje, é raro encontrar jogadores de referência, daqueles capazes de passar toda uma vida (ou perto disso) numa mesma instituição. Continuam a existir capitães e jogadores importantes, mas são cada vez menos neste desporto-rei de muita mudança, muita transferência e pouca estabilidade.
Luisão, no Benfica, foi capaz de construir uma carreira e de deixar um legado poucas vezes visto no futebol moderno. Mais de 15 anos de águia ao peito, recordes de jogos e de títulos, presença garantida na história do clube e vários episódios (uns mais positivos do que outros) que lhe valeram a condição e a posição de um dos maiores líderes da história do clube.
É verdade que se fez referência no futebol europeu, mas nem por isso Luisão passou ao lado no Brasileirão. Ainda muito jovem, o central de 1, 93 foi lançado num dos maiores clubes brasileiros, o Cruzeiro. Ao seu lado jogavam os futuros internacionais Jefferson, Cris ou o lateral argentino Juan Pablo Sorín. Uma equipa importante e um contexto de referência dentro da América do Sul.
A oportunidade passou a regularidade e Luisão esteve três anos como um titular e um jogador importante dentro do clube de Belo-Horizonte. O resultado? Mais de 100 partidas e uma veia goleadora a aparecer como imagem de marca. Afinal, o gigante era capaz de o ser também na área do adversário.
Já era um dos grandes centrais do Brasileirão e até a oportunidade na seleção brasileira tinha chegado. Já se adivinhava uma ida e a habitual viagem até ao continente europeu e, no meio do interesse, apareceu o Benfica. O Girafa chegava a Lisboa e para ficar durante muitos e bons anos.
Estávamos no verão de 2003. O Benfica, sob o comando de Camacho, regressava às competições europeias e partia com uma outra ambição para a nova época. O trabalho do espanhol abria boas perspetivas e os encarnados estavam, finalmente, numa posição de alguma estabilidade, depois da pior séria da história do clube, culminada com o sexto lugar em 2001.
A querer impedir o regresso à Liga dos Campeões estava a Lazio de Roma, a poderosa equipa de Mihajlović, Stankovic e companhia. A eliminatória não correu nada bem (4x1) e ficaram à vista algumas das limitações do plantel encarnado. Já tinham chegado Geovanni, nesse próprio verão, Zahovic, Nuno Gomes e Simão nos defesos anteriores. Decidiu-se, então, avançar para o reforço da defesa, com a chegada de um gigante com mais de 1,90.
Chegado a Lisboa, e não à Luz, pois o Benfica atuava no Jamor no período entre a demolição da Velha Catedral e a conclusão da construção da nova, o defesa demorou ainda alguns dias até ser lançado a titular pelo espanhol Camacho. A estreia aconteceu diante do Belenenses e não podia ter sido mais marcante. Um jogo de loucos, em que o Benfica perdeu no período de descontos uma vantagem de dois golos (3x3) e em que Luisão também se mostrou. Um golo de belo efeito e uma abordagem menos positiva no lance do empate.
Alguns sinais, no final dos primeiros jogos, eram já claros. Estávamos perante um jogador com uma estampa física muito acima da média para o futebol português, um defesa capaz de fazer a diferença no jogo aéreo e nos lances ofensivos de bola parada e, ao mesmo tempo, um atletaainda com margem de crescimento e que teria de melhorar alguns aspetos até se solidificar num futebol diferente e, acima de tudo, mais competitivo como o europeu.
Quando partiu para a segunda época de águia ao peito, depois do primeiro título conquistado às custas do campeão europeu FC Porto, Luisão era já um crónico titular do Benfica e elemento importante dentro da seleção brasileira. O Girafa era, acima de tudo, o espelho de um gigante em retoma, capaz de atacar o mercado de uma outra forma e de se apresentar bem mais competitivo, entre os habituais e as crónicas falsas esperanças a cada verão.
As naturais faltas de flexibilidade, de reflexos e de velocidade valeram algumas críticas ao internacional brasileiro. Luisão estava longe de ser um elemento unânime e algumas das abordagens do central davam razão aos seus detratores, como aquela de Alvalade, no dérbi da primeira volta em 2005/2006, entre Benfica e Sporting, em que o pequenino Liedson foi mais lesto...no ar do que o gigante defesa encarnado. Um simples lance, mas o espelho de um defesa que nem sempre era capaz de compensar tudo aquilo que de bom oferecia à sua equipa. Ou, na época anterior, quando Paíto passou por si como um míssil, num empate para a Taça que os encarnados venceriam nos penáltis.
E por falar em dérbis, o que dizer daquele 14 de maio de 2005?! Estádio da Luz a abarrotar pelas costuras, mais de 60 mil à espera do regresso do Benfica campeão, 11 anos depois, e um Sporting a três vitórias de uma época praticamente perfeita. Ficou tudo adiado para os minutos finais e para aquele salto entre Luisão e Ricardo que ainda hoje muitos dizem ser falta e que, na altura, significou uma autêntica explosão e a convicção que o país voltaria a vestir-se de vermelho e branco. Que momento do Girafa!
Entretanto, e fazendo a ponte para os anos mais importantes vividos na capital portuguesa, Luisão foi acompanhando, como a própria equipa, ao regresso em força do FC Porto aos títulos. Quatro campeonatos seguidos e, pior do que isso, três terceiros lugares e, até, um quarto. Luisão caminhava para registos impressionantes no Benfica, era cada vez mais importante e indispensável para os diferentes treinadores, mas faltavam títulos e momentos a um jogador que aproveitava a montra da seleção para chegar a outros patamares - duas Taças das Confederações e uma Copa América.
E se é certo que essa segunda metade da primeira década do século não trouxe grandes sucessos desportivos no clube, isso não quer dizer que Luisão tenha passado ao lado de águia ao peito. O golo ao Liverpool, que permitiu ao Benfica entrar confiante e pronto a surpreender Anfield, foi o momento mais alto dessa fase coletiva menos boa. Um lance de pura inspiração que não apagou, contudo, um desentendimento com um colega de equipa que iria fazer manchetes em Portugal.
O caso insólito e grave aconteceu a 5 de janeiro de 2008, em Setúbal. Um ou outro galhardete entre colegas de equipas, no próprio calor do jogo, é habitual, mas o que Luisão e Katsouranis protagonizaram a meio da segunda parte foi um momento de cabeça perdida. Só os colegas impediram danos maiores, antes da dupla substituição, mas o nome e a imagem do clube tinha ficado em cheque, entre muitos empurrões e uma confusão que não trouxe nada de bom à equipa, bem pelo contrário.
Chegamos, então, a um dos momentos mais importantes da passagem de Luisão pelo Estádio da Luz. Sim, porque a chegada de Jorge Jesus não foi só capaz de catapultar o futebol do Benfica para outra dimensão, também Luisão ganhou e muito com a entrada de um treinador metódico, ofensivo e capaz de elevar o nível de quase todos os elementos do plantel.
A partir de 2009, o Girafa ganhou uma outra condição. Não propriamente simbólica, porque o carisma e a capacidade de liderança já eram bem patentes nos anos anteriores, mas mais futebolística. Luisão passou a ser um defesa mais fiável, menos errático, mais rápido, ainda mais poderoso e muito mais conhecedor do jogo e dos seus próprios limites. David Luíz, Garay e Jardel, acima de todos os outros, foram parceiros de lutas importantes e de alguns dos maiores feitos da história recente do Sport Lisboa e Benfica.
Nessa luta, Luisão voltou a demonstrar que quando marcava, era mesmo para ser importante e decisivo. Se o Benfica foi campeão, em 2010, então bem pode agradecer ao Girafa, que fez o golo decisivo no jogo do título, diante do Sporting de Braga, num filme que a Luz já tinha visto cinco anos antes. Que se levante o caneco, sendo assim.
Entre esta autêntica odisseia que foram os anos com JJ no comando, nem tudo correu bem, é claro. Porque o desgaste foi muito, porque depois de uma época fantástica como a de 2009/2010, seguiram-se três anos praticamente a zero e porque, no caso pessoal de Luisão, já não eram muitas as oportunidades para experimentar um novo futebol e para, quiçá, aumentar ainda mais a saúde económica.
Luisão acabou por ficar e o sentimento de uma possível transferência esvaneceu-se à medida que uma grande dupla com Garay ia sendo construída. E foi mesmo com o argentino ao lado que o internacional brasileiro viveu um dos momentos mais polémicos de águia ao peito. Na Alemanha e na reta final de preparação para a nova temporada, o capitão encarnado acabou por se envolver num momento menos bonito com o árbitro Christian Fischer, no embate com o Fortuna Dusseldorf, com um empurrão mais ou menos forte que levou à queda aparatosa do juiz, ao final antecipado do particular e a uma suspensão de dois meses.
Cumprido o castigo, foi tempo de regresso ao onze e uma posição cada vez mais importante dentro do clube. Foi com Luisão a capitanear que o Benfica partiu para duas temporadas com percursos muito semelhantes, mas com um resultado totalmente diferente. A um 2012/2013 de desilusão no Dragão, em Amesterdão e no Jamor, seguiu-se um 2013/2014 praticamente irrepreensível, de total limpeza nacional, e logo às custas do principal rival FC Porto, e de nova final europeia, esta com um desfecho triste. Chegava ao fim o sonho de imitar José Águas, Eusébio ou Coluna.
Nesta fase de maior pujança do clube, Luisão não impediu mais uma pequena polémica, esta não muito bem recebida por parte dos adeptos. O verão de 2013 e o regresso para uma nova temporada foi particularmente complicado, depois dos dramas vividos com Kelvin, Ivanovic e o Vitória SC. Numa altura em que uma segunda derrota em duas jornadas pairava no ar, com o Gil em vantagem em pleno Estádio da Luz quando o cronómetro quase assinalava 90 minutos, o Benfica operou uma reviravolta impressionante. Markovic e Lima fizeram explodir as bancadas e Luisão, que não perdoou os adeptos devido às críticas e assobios ouvidos particularmente depois do golo do adversário, mandou calar parte da plateia. A atitude de Jorge Jesus foi rápida e simbólica: o técnico não queria um capitão fragilizado junto da massa associativa, bem pelo contrário.
E não só o defesa continuou a ser importante nas ideias de Jorge Jesus, especialmente quando Garay saiu e o habitual suplente Jardel subiu à condição de titular, como foi com o técnico que Luisão viveu, provavelmente, a noite mais inspirada de águia ao peito. Logo num palco mítico e histórico como White Hart Lane, e diante de um Tottenham recheado de bons valores, como Chadli, Eriksen, Adebayor, entre outros, o internacional brasileiro brilhou a grande altura, com dois belos golos que construíram uma jornada europeia épica para o futuro campeão nacional (1x3).
Os problemas físicos começaram a ser uma constante, o terceiro dérbi da época resultou numa operação indesejada ao braço esquerdo, repetida uns meses mais tarde, numa longa ausência que acabou por resultar no primeiro campeonato ganho ao serviço do Benfica sem a posição de titular indiscutível.
A partir do verão de 2017, contudo, a história mudou de uma vez. A capacidade do Benfica ser a melhor equipa portuguesa e a própria posição de Luisão dentro do plantel encarnado. Se na primeira fase da época ainda se assistiu a mais presenças do Girafa no onze, uma lesão grave, no mês de dezembro, acabou praticamente com a época do capitão, que já estava, no entanto, disponível quando o FC Porto roubou o penta ao principal rival. Era o início do fim.
Um adeus mais triste que não apaga a quantidade interminável de recordes e marcas. Segundo jogador com mais jogos na história do Benfica, apenas atrás do quase imbatível Nené, terceiro defesa com mais golos, numa posição inferior a Cavém e Humberto Coelho, duas dezenas de títulos amealhados, recordista em partidas europeias, bem à frente do também capitão Veloso, de longe o estrangeiro mais utilizado de toda a história encarnada. Impressionante!